Aniversário

"O meu próprio monóculo me faz pertencer a um tipo universal" (Álvaro de Campos).*

Por Álvaro de Campos
Comentário de Sérgio Gonçalves
Avatar por Ewerton de Moura 
 
Festejemos Álvaro de Campos. Para quê? Lá sabemos! Assim mesmo festejemos.

Algo tão sincero nunca tinha lido. Nem ainda li: sinceramente. Tampouco sei de quaisquer meios, a não ser a poética de Campos, onde tal sinceridade se transmite com tanta plenitude. Com Álvaro de Campos a poesia de jeito nenhum pode louvar uma mentira. Nela cada ser humano contempla qualquer humanidade como sua pois é sua tão-só.

Mesmo nas exaltações em odes de tudo que lhe vem a mente Campos critica, não logo perceptível talvez por causa dos tons festivos ou melancólicos com que propaga sua mensagem, assim mesmo julga, com mão firme, portanto lúcida. Na dura realidade nos esquecemos que seu caráter irreverente mais suas louvações sem precedentes se dão metidas em dor. A mais humana de todas: ser.

Alma de ser humano que vem a ser incompreendida novamente!

Que remédio?

Sabe-se lá!

Das suas três fases: na verdade são que nem as da lua. Por todas as empolgações de Campos antevemos a fatalidade de viver estampada nitidamente nas poesias feitas após as euforias de conceber seu desejo pelas sensações a roda de tudo, por tudo, com tudo, na marcha vanguardista que promete pelas máquinas grandes esperanças. Estas em suas odes não são mostradas como tais, contrariamente qualquer brutalidade futurista, mesmo na Triunfal, tão empolgante, sensacional, quanto pesarosa se compreendida nas entrelinhas.

E para gente reacionária qualquer esperança pode ter como paisagem um campo de concentração por exemplo.

Quê?

Toda reação pode ser também revolucionária.

...

Na chuva, no sono, nos locais revisitados (Lisboa, Tavira, tantos outros), por onde mais houver Álvaro de Campos, mundo, gente, vida, não se cansa tal criatura de se perder... Mas sem encontrar-se: diferentemente dos anseios florbelianos.

Bem... Alvo preferencial da contradição por causa de seus invulgares sentimentos, Álvaro revive cada vez mais em toda gente questionadora, sabedora que tudo pode ser tão pouco: quase nada.

Pois antes de nos aprofundarmos em Álvaro de vez lendo Folhas de Relva vamos apreciar Aniversário...

Para quem aniversaria nada mais justo!



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...



15-10-1929


Criado por Moura Gonçalves caçula com imagens feitas por Almada Negreiros.

*: Estilização de Campos em MultiPessoa.

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